IMPRESSÕES DA REVOLUÇÃO DE 1930

INTRODUÇÃO
Nada do que jamais aconteceu pode ser dado por perdido para a História. Certamente, só a humanidade redimida cabe o passado em sua plenitude. Isso quer dizer: só a humanidade redimida pode citar cada um dos momentos do seu passado. Cada um dos momentos torna-se uma citação na ordem do dia – dia que é, justamente, o do juízo final. – Walter Benjamin – Sobre o conceito de História.
Conhecer o passado como o dia a dia dos homens é uma tarefa contínua. Sentir-se parte dela é uma obrigação constante. Foi isso que procuramos fazer ao colhermos depoimentos de antigos moradores de Passa Quatro, sobre um acontecimento que os haviam marcado. Assim, a Revolução de Trinta surgiu como tal. Para isso tomamos Lucian Febvre: “(…) Para fazer história, virem resolutamente as costas ao passado e antes de mais nada vivam. Envolvam-se na vida “.
Cada um dos depoentes foi para nós um personagem importante na reconstrução desse acontecimento. Com isso acreditamos ter atingido nosso objetivo que foi nos integrarmos nesse processo contínuo que é a História. Fomos também parte dela ao reconstruirmos um passado que para nós parecia estar tão distante. Entretanto estava ali, dentro de casa ou na casa do lado. O que podemos dizer é que a História está em nós. Vive em nós. Possamos encontrar nestas linhas, um pouco do que aprendemos neste exercício de tê-la reconstruído.
A CIDADE, APENAS UMA FOTOGRAFIA
Poderia falar de quantos degraus são feitas as ruas em forma de escada, da circunferência dos arcos dos pórticos, de quais lâminas de zinco são recobertos os tetos: mais sei que seria o mesmo que não dizer nada. A cidade não é feita disso, mas das relações entre as medidas de seu espaço e os acontecimentos do passado (…). – Ítalo Calvino – As Cidades Invisíveis.
Nos finais dos anos 20, uma pequena cidade nas encostas da Serra da Mantiqueira, não deveria ser diferente das inúmeras cidades do interior de Minas. Mas, para seus antigos habitantes, ela guarda histórias memoráveis. Lembranças de um tempo que não volta mais. Uma fotografia na parede da memória. Assim, Passa Quatro, pequena cidade do sul de Minas, guarda na memória de seus habitantes, algumas impressões que parecem mostrar os seus contornos. A sinceridade com que Dona Ozorina, 93 anos, nos conta: “Passa Quatro era muito acabadinho, muito feio, muito pouca casa. Era assim, cheio de moradores velhos. (…) Depois que ele foi aumentando. Os velhos de lá que foi arrumando, foi ajuntando. (…) No centro da cidade… não era muito feio porque era cheio de árvores. A rua era tudo… nem não era rua, era chão, com capinzal. Tinha bastante árvore plantada, que era umas árvores que chamavam Magnólia, que era umas árvores que tinham lá. Tinha poucos moradores mesmo. Moravam fora. Uns moradorzinhos pobre né? Como alí… alí naquela vargem pra cima de onde mora o Cilas. Ali, aquela vargem por alí afora era só bananal do brejo, né? Não tinha nada de casa, não tinha nada. E ali pra cima, onde é o Posto… Posto de Saúde, ali era morro, só casinha pobre, furada, casinha velha, gente muito pobre ali, muito pobre demais.”
Era uma cidade pequena, com uma população simples, de gente humilde a viver calma e tranquila, na sinceridade de seguir seu curso. Um coronel a dar ordens, a comandar eleitores. As famílias a se porem tranquilas nas janelas, nos “footing” na estação, nas rezas no cair da tarde. Uma vida despreocupada como no depoimento de Dona Maria Geraldina, 76 anos: “Um povo que não tinha… quer dizer, nós não tínhamos aqueles problemas de ficar pensando em violência, em coisa nenhuma… (…) As famílias saíam e as chaves ficavam pro lado de fora das portas. Não tinha perigo.”
E seguia lentamente o seu curso. Um grupo escolar, um colégio de freiras, uma escola de agronomia, uma fábrica de bebidas, de louças, de ladrilhos, de sabão… O comércio de secos e molhados e de tecidos… A agropecuária. Mas o forte mesmo era o fumo, nos seu Ary, 81 anos: “A principal atividade era o comércio de fumo em corda. Eles compravam e vendiam o fumo pra fora da cidade, e para outras regiões. Também havia laticínios e comércio de varejo (secos e molhados). E também havia trabalho em louça e fabricação de utensílios de barro. Isso foi o principal da minha época. Mas o principal mesmo era o comércio de fumo em corda”.
Todavia, o ritmo da vida cotidiana era quebrado pela ferrovia. Era por ela que chegavam e saíam os forasteiros. Por onde as notícias chegavam e partiam, rumo a seus destinatários. E foi por ela, que chegavam os inúmeros estrangeiros, como tão bem nos relatou Dona Joana Castilho, 76 anos: “Era uma cidade cosmopolita. Nós tínhamos árabes, turcos, franceses, portugueses, alemães, italianos, húngaros, africanos e ingleses. Início do turismo. (…) Pois, achavam que lembravam a Suíça! Perdão, esqueci, um suíço. Ele comprou a Fazenda Mira Serra. Vocês conhecem… logo ali, defronte do campo de futebol, do outro lado da linha, umas árvores bonitas…”
A ferrovia cortou a cidade e a dividiu em “parte de cima e parte debaixo da linha”, tão comum escutar na fala dos depoentes. Nesse momento, os ferroviários eram de número expressivo, ainda nos relata, Dona Joana Castilho: “Ferroviários, número expressivo, eles estavam construindo linhas, colocando dormentes… e eles tinham oficinas que eles trabalhavam. Então, era um número bem grande.”
E foi pela linha do telégrafo da Rede Mineira de Viação que haveria de chegar notícia tão inesperada…
PELA LINHA DO TELÉGRAFO, A REVOLUÇÃO
… aquela fúria de metralhadoras sacudindo e ponteando os céus e os ares de Minas Gerais. Aquela quieta e densa atmosfera, aquele tão fino éter e leve que um e outro aderiam às coisas – à superfície da terra, às pontas das montanhas e das torres das igrejas, aos perfis dos profetas, às cruzes de adro, de Passos, de tocaias – guardando cada instante de seus negativos, como fino bronze, como sensível cera ou sutilíssimo eco – já não tinha mais aquela densidade, aquele peso, aquela inércia, aquela paz. – Pedro Nava – O Círio Perfeito.
O fato ocorreu no mês de outubro de 1930. Na madrugada do dia 4, pelo telégrafo da Rede Ferroviária a notícia de que a Revolução havia estourado. Alarmado, o povo da cidade se reunia em grupos pelas ruas em busca de informações. Na estação, os primeiros telegramas eram afixados, e acotovelando-se, os curiosos liam vorazmente as notícias. Heli Menegale, poeta e ensaísta, vivera este momento em Passa Quatro e relatara em seu “Cabo Deodato”: “As novas telegráficas atravessaram o povo como uma corrente elétrica! (p.23).” “(…) Recordavam-se, numa sucessão impressionista, os acontecimentos que antecederam a revolução, a intromissão ilegítima do Presidente da República na escolha do seu sucessor, (…) a vinda triunfal do candidato do povo para a leitura de sua plataforma, no Rio, as caravanas de propaganda, as tentativas de intervenção no Estado, que nos trouxeram dias de angústia e indignação, a farsa das eleições, o martírio da Paraíba, coroado pelo sacrifício de João Pessoa, tudo devido a preponderância de Washington Luiz, (…) o requintado representante da oligarquia em que se transformara a república brasileira. (p.25).”
Passado o susto, veio o entusiasmo pela causa. Era preciso guarnecer o Túnel, fronteira entre Minas e São Paulo. Dona Joana Castilho nos conta, com orgulho e sinceridade o acontecido: “No túnel, um grupo de militares, chefiados pelo Cabo Deodato, e civis dispostos a retardar o ingresso dos invasores. Defendendo assim, o solo mineiro. Eles ficaram lá então… do lado de lá… ninguém sabia quem estava ali… mas os armamentos… precaríssimos.”
Seu Ary nos especifica em seu depoimento o número de pessoas que estiveram no Túnel, a guarnecê-lo: “Nós tivemos 12 pessoas voluntárias que se uniram e foram para o alto do Túnel para, pelo menos atrasar a invasão dos paulistas que eram em grande quantidade, isso foi conseguido, comandados por um cabo da polícia e mais 12 policiais. Eles retiveram um pouco a invasão dos paulistas. Mas foram vencidos como havia de ser mesmo!!!”
Retomando o depoimento de Dona Joana Castilho, podemos constatar o nome de alguns colaboradores da resistência no Túnel: “Colaboraram dentro possível. Com o que tinham! Mostrando civismo e amor a terra. Foram João Fernandes, retratista; Arlindo de Oliveira e Silva, comerciante; Cláudio Polland, estudante de Agronomia; Lindolfo Guedes (parente), funcionário municipal; Virgílio, era proprietário de bar e lustrador de móveis. Não tinham treinamento militar e nem armamento adequados. Coragem mesmo… Só coragem!”
Mas passados alguns dias, as tropas legalistas que haviam se sediado na cidade fronteiriça de Cruzeiro, no Estado de São Paulo, se puseram a caminho. A resistência se armava como podia, assim relata Heli Menegale em obra já citada: “(…) Os nossos homens estavam entrincheirados em território paulista, um pouco abaixo do ápice da serra, a partir da primeira boca do túnel. Com auxílio de um alemão que servira na Grande Guerra, e residente em Passa Quatro, armaram-se duas minas explosivas, subterrâneas, uma visando a estrada de rodagem, outra a estrada de ferro, em frente ao nosso campo. (pp.36-7).” “Na estação, que fica justamente à saída superior do túnel da Mantiqueira, permanecia de fogos acesos, noite e dia, uma locomotiva, que, na conjuntura de assalto inimigo, seria lançada linha abaixo, para descarrilar dentro do túnel e obstruí-lo. (p41).”
Entre às 11 horas da segunda-feira, 13 de outubro, o inevitável acontecera. Irrompera o combate! Assustados com o poderio armado dos paulistas, civis e militares mineiros que guarneciam a serra se puseram em retirada. Cansados, chegam a cidade. O inimigo rompera o túnel. Já se encontravam em Minas.
SALVE-SE QUEM PUDER, OS “PAULISTAS” VÊM AÍ
Os Paulistas viraram a serra, / Alegres e contentes, / Chegaram no Cantagalo, / Morreram arreganhando os dentes.” – Domínio Popular.
Era assim que se tratavam naquela época. Não era comum falarem em legalistas. No domínio popular, ficara mesmo a divisão entre Estados. dona Nair, 83 anos, em seu depoimento, deixa muito claro esta distinção: “(…) Naquele tempo, a gente falava paulistas e mineiros: paulistas de São Paulo e mineiro daqui.”
A cidade ficara deserta. Assustada, a população se refugiara nos altos de serra, em fazendas e casas amigas. entre os depoentes, dona Joana Castilho e seu Ary saíram da cidade, Dona Maria Geraldina e Dona Nair permaneceram em suas casas, Dona Ozorina, moradora no Bairro de Tronqueiras, caminho do Quilombinho, permanecera em casa e recebera algumas famílias em sua propriedade.
Comecemos por Dona Joana Castilho: “(…) A minha família foi a última a sair. É… fomos nos juntar a mais duas famílias: Diamantino Pereira, (…) e Mariano Sitti. Eram mais ou menos dez adultos e os demais, número bem maior, crianças e adolescentes. É porque eram casais né?” “Cada família escolheu o local para ficar e organizou a sua própria fuga. Carro de boi, charrete, automóveis – eram mínimos os que tinham na cidade – caminhões também. Então, foi assim bem simples. Muito próprio da época.”
Seu Ary, em sua objetividade, nos relata: “Cada um se encarregava da fuga da sua família, de procurar abrigo fora da cidade. Mas, às vezes, convidavam os outros e ajudavam a indicar lugares para eles ficarem. Mas a maioria foi saindo para onde tivesse meio de ser recebido. A maioria da população fugiu para Virgínia e Mato Dentro. Eu fui para o Mato Dentro. Fiquei na casa de um amigo aproximadamente uns 4 dias.”
No depoimento de Dona Maria Geraldina, a determinação e coragem de sua mãe são ressaltados: “(…) Nós não fugimos. A minha mãe… A mamãe era filha de militar, acostumada com uma vida mais rude, agitada, né? Aquela coisa… eu não vou sair daqui porque o Basílio vai aparecer aqui… Ele estava viajando para fora. Então, ela falava: eu tenho certeza que ele vai aparecer aqui. O Basílio era o meu pai. Ele não ficava longe por consideração nenhuma. Só se matarem ele no caminho. Caso contrário ele vai chegar aqui. E então nós ficamos. Ah! o seu Régnier mandou a família dele para cá, para nossa casa também. Ficamos esperando o que acontecia. Foi um dia só? Eu não me lembro mais… Isso na minha idéia não está cabendo… Se foi um ou dois dias… que a gente não podia chegar na porta porque os soldados estavam andando para baixo e para cima. Mamãe abriu a porta e a gente olhou e papai havia vindo. Ele e o seu José de Almeida. Haviam vindo os dois pela AvenidaChegaram em casa fugindo.”
Dona Ozorina, na sua simplicidade de mulher do campo, nos conta da solidariedade prestada as famílias que se refugiaram em sua propriedade: “Passa Quatro ficou sem nenhuma pessoa de morador. (…) Foi tudo assim… uns vieram pra aqui, uns pra ali, foram pra Serra dos Lamins, foram lá pro Bonsucesso, foi pra todo lugar. Passa Quatro e Tronqueiras não ficaram com ninguém dos moradores. Ficou tudo por conta da soldadesca que aquilo amarelou de soldado. Aí, o pessoal foi saindo… saindo! Carregando a família pro mato, lá pro’s retiro do pessoal… todo lugar. Aqui em casa, nós demos muita comida pro povo. Graças a Deus não faltou nada pra nós. Enchemos bem o povo de comida. Tinha dia de ter cinquenta, sessenta pessoas aqui. Sessenta famílias. Não era? Você imaginou? Tinha família de seis, sete pessoas em casa. Como é que dormia na casa pequena? (…) Dormiam pro paiol, dormiam pra’s casinhas. Passava muito mal. (…) Nossa! tinha tantagente!… A gente fazia comida, tinha dó dos outros que não tinham. A gente precisava estar repartindo, né? O que valeu nós foi a rapadura e queijo que nós tínhamos. Tinha bastante queijo, né? Eu sei dizer que o pessoal sofreu muito. Minha mãe tava na cama, tava doente. Não podia sair. O Joaquim também falou: nós não saímos. De o que der, seja o que Deus quiser, nós somos aqui mesmo. Pra onde é que nós emos de ir? Pra onde vai o ferro que ferrugem não vai? Nós é aqui mesmo.”
Solidarizavam-se. Buscavam-se uns aos outros para repartirem seus medos, duas privações. Era uma forma de minimizarem o terror em que viviam. Coisa nunca antes vista numa pacata cidade do interior de Minas. Todavia, eram mineiros, e como todo bom mineiro era preciso resistir. E assim prosseguiram-se os dias até a batalha final…
O SANGUE CORRE NO CÓRREGO FUNDO
Angaturama: [De origem tupi] Entre os indígenas Muras, o espírito protetor. – Dicionário Aurélio.
Mas, não inventa o povo de lá pra vim brigar aqui não, no Estado Minas. Nesse nosso lado aqui, que ele tá pronto. Não tem outro lugar igual. (…) – Seu Joaquim, 103 anos, depoente.
Estação de Angaturama: Pé do Morro. Município de Passa Quatro. As tropas mineiras revoltosas haviam estacionado nesta localidade. Era 16 de outubro. As tropas governistas encaminhavam-se para Itanhandu. E haveriam, legalistas e revoltosos, de se defrontarem em meio do caminho. Como diz o poeta; “No meio do caminho tinha uma pedra, tinha uma pedra no meio do caminho.”
Ouçamos os depoentes. Dona Ozorina, uma quase personagem Rosiana nos narra a épica batalha entre mineiros e paulistas: “Aí, foi vindo, foi vindo s’embora pra cá. E desceu pra linha abaixo, vamos até Três Corações. Mas eles se enganaram perfeitamente. Eh… vamos na máquina. A paulistada… Vamos até Três Corações, hoje nós vamos. E a mineirada tava tudo entrincheirada no Cantagalo. Tanto fazia atingir pra linha como pra estrada. Lá no alto do Cantagalo que chama. E o Pé do Morro era muito ‘apreparado’. E esparramou mineiro por tudo quanto foi campo. Por tudo quanto foi campo! Do lado dos Carneiro que era encostado aqui no nosso terreno, era campo. É campo! Do lado do Bonsucesso, daquele lado pra lá, era morro há perder (…). E a mineirada entrincheiraram naquele lugar, e quando a máquina de paulistas vieram, eles aproveitaram. Chegaram ali no pontilhão da estrada e da linha…e desmancharam. Desmancharam e se alojaram por ali. Por aquele córrego… Córrego Fundo. Era um córrego fundo. Por isso se chama Córrego Fundo. Era um córrego fundo que tinha muito mato grande, muito mato grosso. Entrincheiraram muito soldado no mato, dentro d’água, né? (…)”
“Tinha soldado dentro do córrego até não poder mais. Soldado na Fazenda do Lindolfo… que o pessoal do Lindolfo Carneiro tinha corrido pra Serra dos Lamins. Largaram as casas deles. Eles entrincheiraram nos porões. Lá no Pé do Morro eles estavam alojados nos altos, né? Tudo bem arrumado de bastante trincheira. Os paulistas chegaram de corpo limpo naquele panelão de buraco… sem trincheira, sem nada. Como é que havia dos coitados não morrer? Era a conta da metralhadora rapar… (…) principiou as duas horas da tarde… Principiou as duas horas da tarde o tiroteio. Os paulistas vieram de caminhão. Aquela ‘caminhãozada’ ali no quarenta. Então, os caminhões pararam pra trás, os soldados saíram adiante, quando chegaram na viradinhado morro… a primeira balada, ferveu de metralhadora. Nossa Senhora! Nós ficamos cansados de ouvir, porque ficava quase que aqui mesmo no terreiro, né? Aquela barulhada. Depois o caminhão que foi pro… lá pro Bonsucesso… que é o caminho do Zé Pedro… Eles pegaram o Zé Pedro lá no Pinheirinhos. O Zé Pedro vinha vindo de viagem e pegaram o Zé Pedro pra condutor deles. Levaram ele pra serra da… pra cima da Serra do Bonsucesso. Lá a primeira rajada que eles deram… o Zé Pedro morreu. Por que estavam alojados no alto da mata. lá chama Alto da Mata, né? Lá no Itanhandu, no Bonsucesso.”
“(…) Muitos mortos, muito! Morreu paulista pra derrama. A metade foi pro Cruzeiro.”
Mas, Dona Ozorina não se solidarizou só como os conhecidos que ela abrigou. como já relatamos. No momento em que a batalha se acirrou, muitos dos soldados desertaram. Foi um salve-se quem puder! E passaram por sua propriedade mortos de fome, de sede e pedia sempre alguma coisa. Assim nos relata Dona Ozorina: “Na descida deles, na volta deles… voltaram muitos. Na volta deles… voltaram muitos! Na volta deles, eles desciam por aqui a fora, coitados. Eu tinha dó deles, porque eles vinham pedir comida, né? (…) Aqui fazia muito queijo, nós tínhamos muita rapadura nessa ocasião. Então… nós fornecíamos a eles. Comida… você agora tá fora de hora! Cedo… às vezes já tinha passado da hora. Serve? Aceita um queijo? Aceita uma rapadura? Ah, Nossa Senhora! Era com as duas mãos que os coitados pegavam.”
Derrotados, os paulistas se puseram em marcha. Debandaram como puderam. E na pressa desenfreada de descer a serra, não tiveram tempo de contabilizar seus mortos e feridos. Dona Joana Castilho nos relata este episódio: ” Os legalistas foram derrotados (…) e grande parte da tropa foi ferida e houve muitas vidas ceifadas, não sei calcular. (…) Eles passavam naqueles caminhõezinhos, porque eram pequenos, da Ford, e com um encerado em cima, e lá dentro mortos e feridos… Só em Cruzeiro é que foram fazer a seleção, quem estava morto, quem estava vivo. Ficando assim, pela rua da cidade aquela lista de sangue. Foi horrível, Deus me livre!”
Após o combate e retomada a cidade pelas tropas mineiras, a volta para casa. Aos poucos, cada um ia chegando e a cidade voltava à sua rotina. Mas apenas o susto daqueles dias. Dona Joana Castilho nos conta um fato pitoresco acontecido com sua família em Tronqueiras onde haviam se refugiado: “A população voltou, assim que as tropas legalistas foram dizimadas lá no Pé do Morro. Nós que estávamos em Tronqueiras, fomos trazidos, melhor dizendo, retirados daquela casa para a nossa casa. Então, daquelas três famílias que estavam lá em Tronqueiras, na Várzea, foi uma patrulha legalista lá. Pediram aos chefes de família que se retirassem, que eles perceberam que tinha muita criança. Eles lá no morro e a gente ali brincando de roda, de correr. Nem estava aí com o que estava havendo no mundo, né? Então, foi um sargento, um cabo e um soldado pedir que a gente, que os pais retirassem as crianças eeles próprios nos retiraram em caminhõezinhos deles. (…) Eram paulistas. Porque não tinham mineiros aqui (…) Era só civil escondido nas casas, nas fazendas… E nós ficamos bem na beira deles, atravessava a linha, a estrada… e eles no morro e nós lá embaixo. Se eles quisessem metralhar, né? Eles teriam matado gente inocente, crianças. (…) Oh! o meu irmão que era mais velho do que eu, o Castilho, 5 anos, eu tinha 9 anos e ele 14… Então, não tinha nem como defender, né? eles foram humanos nesse caso. Eles foram amigos, né? De retirar aquele povo que era inocente, nada tinha a ver… A briga era política. Nós nada tínhamos com isso. O legalistas defendendo porque queriam Getúlio Vargas, e queriam o Júlio Prestes. E era presidente Washington Luís.”
Entretanto, em 24 de outubro, o presidente Washington Luís seria deposto pelas tropas revolucionárias. A paz voltava a reinar pelo menos por enquanto, pois um novo tempo se anunciava.
CONCLUSÃO
Um homem se propõe a tarefa de esboçar o mundo. Ao longo dos anos povoa um espaço com imagens de províncias, de reinos, de montanhas, de baías, de naves, de ilhas, de peixes, de habitações, de instrumentos, de astros, de cavalos e de pessoas. Pouco antes de morrer, descobre que esse paciente labirinto de linhas traça a imagem do seu rosto. – Jorge Luís Borges – Epílogo.
Vários foram os momentos que nos sensibilizaram neste trabalho. Entre um depoimento e outro ficou-nos a impressão do dia-a-dia da Revolução. As vozes de cada depoente recheadas de emoções. Quantos não foram os que contaram suas experiências desse acontecimento sem encherem os olhos de lágrimas? Mas, para além da tragédia a lembrança de um outro tempo.
Ao redigirmos esse texto procuramos dar voz às narrativas e dar aos nossos depoentes o sentido do vivido. Integrando-os como sujeitos da história, percebendo-os como parte da reconstrução histórica. Tivemos a sorte de encontrá-los solícitos, gratos por ouví-los. Há quanto tempo esperaram para serem ouvidos? Por quanto tempo ainda esperarão para compreendê-los? Que o anjo da história nos redima, pois nós é deveríamos estar gratos. Em suas simplicidades muitos de nossos depoentes nos comoveram. Quantas de suas experiências não nos mostram da vida, do ser mineiro, do persistirem na labuta diária de simplesmente serem. Um dos depoimentos que mais nos comoveu foi o de Dona Ozorina, que em sua lucidez nos respondeu, quando lhe perguntamos como se sentia recordando aquele acontecimento: “A gente fica pensando… pensando muita coisa, né? Fica quieta, não tem o que fazer. No tempo que eu trabalhava tinha serviço. Ía pra lá… ía carregar comida na roça. Ía muito longe com aquela balaiada com panela de comida. Que até hoje me arrepia de ‘alembrar’. Que tanto que eu sofri carregando panela de comida pro pessoal que tava na roça. Meus cunhados… Tinha quatro cunhados que trabalhavam junto com ele (aponta se Joaquim). Eh… eu capinava arroz nesses brejos que tem alí pra baixo… Nós plantávamos muito feijão. Tinha tanta coisa… Depois foi afrouxando… foi afrouxando! Agora tô tendo tempo de ir ‘alembrando’ essas coisas todas.” Os afazeres cotidianos não lhe davam tempo de lembrar. Hoje, o que lhe resta é lembrar. Talvez esteja ai a chave da questão: o passado nos liberta.
BIBLIOGRAFIA
1. Depoimentos: •Joana Castilho Pinto, 76 anos, moradora do Centro. •Nair dos Santos Ribeiro, 83 anos, moradora do bairro da Feira. •Maria Geraldina Borges da Silva, 76 anos, moradora do Centro. •Ary Simões Coelho, 81 anos, morador do Centro. •Ozorina de Paula Gonçalves, 93 anos, moradora do bairro Tronqueiras. •Joaquim Gonçalves, 103 anos, morador do bairro Tronqueiras.
2. Livros: BENJAMIM, Walter. Obras Escolhidas: magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1994. CALVINO, Ítalo. As Cidades Invisíveis. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. CARNEIRO, Helena. Memórias de Passa Quatro. São Paulo: Raízes, 1988. FAUSTO, Bóris. História do Brasil. São Paulo: Edusp, 1995. FEBVRE, Lucien. Combates pela História. Lisboa: Editorial Presença, 1985. FERREIRA, Marieta de Moraes. AMADO (Org.). Janaína. Usos e Abuso da História Oral. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas Editora, 1996. KAMMEN, Carol. On Doing Local History. Nashville/Tennessee: The American Association for State and Local History. 1988. MENEGALE, Heli. Cabo Deodato. Rio de Janeiro: A Noite, 1936. MONTEIRO, Márcio. ROCHA, Francis. Lembranças de Passa Quatro (1888 – 1988). São Paulo: Raízes, 1988. NAVA, Pedro. O Círio Perfeito. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983. NOSSO SÉCULO 1910 – 1930. São Paulo: Abril Cultural, 1981, vol. 2. PACHECO, Vavy. O que é Historia. São Paulo: Brasiliense, 1986. SCHWARZSTEIN, Dora. Una Introducción al uso de la Historia Oral en el aula. Mexico: Fondo de Cultura Económica, 2001. TRONCA, Ítalo. A Revolução de 1930: a dominação oculta. São Paulo: Brasiliense, 1986. VIEIRA, Maria do Pilar de Araújo, et alii. A Pesquisa em História. São Paulo: Ática, 1989.
POST-ESCRIPTUM
 Lá se vai mais de uma década desde que este trabalho foi realizado. Colhemos os depoimentos entre agosto e setembro de 1997 e em seguida elaboramos o texto que aqui se apresenta praticamente quase sem nehuma alteração. Este trabalho surgiu como um exercício do “fazer história” com alunos do ensino médio. Juntamente comigo eles participaram das entrevistas e discussões sobre a atividade do historiador e do produto dessa atividade. Era um grupo que buscava um diálogo entre a produção da História e o papel dos sujeitos da História. Naquele mesmo ano, foi concedido ao trabalho o prêmio “Projeto Gente Consciente 97”, concedido pela Secretaria de Educação do Estado de Minas Gerais. Os alunos que comigo participaram dessa jornada: Eduardo Werveton dos Santos, Júlia Greca de Paula, Matheus Gama Teixeira e Myriani Gaspar Jardim Moreno, guardo sempre o entusiasmo que tiveram na execução. Terei deles sempre a boa lembrança. Dos depoentes a quem dedicamos este trabalho é inesquecível os momentos de solicitude que passamos juntos. Hoje, apenas uma das depoentes ainda se encontra entre nós, lúcida e gentil. A todos eles, estejam aonde estiverem, nossa eterna gratidão. Ainda me lembro da quadrinha de dominio público que naquela época me foi dada na intimidade da amizade familiar pela Vó Ía, Maria Fernandes Monteiro, que saudosamente lembramos aqui. Somente hoje ao mexer em velhos papéis encontrei este texto, assim como as entrevistas transcritas. Resolvi publicá-los em um blog para que todos tenham acesso e façam as inúmeras leituras que elas possibilitam. Não tivemos na época tal objetivo, mas o de apenas dar voz aos sujeitos. O que me chamou a atenção quando o encontrei em meus guardados, foi a atualidade do texto, parece que foi escrito ainda a pouco. Embora as suas pretensões sejam pequenas, fica aqui a nossa colaboração.



















Comentários

  1. Fábrica de fumo José di Lorenzo ,fotografia da casa do meu avô

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